E SE TIVÉSSEMOS A DEMOCRACIA NA PALMA DE NOSSAS MÃOS?



Um dos benefícios do isolamento forçado, a que temos sido submetidos desde a chegada nada discreta da Covid-19 à sociedade global, é a possibilidade de dedicar um pouco mais de tempo à leitura. Com a implementação de trabalho remoto, os minutos (e nunca foram poucos) dedicados ao trânsito de uma cidade grande puderam ser convertidos em percorrer com os olhos infindáveis conexões de letras, palavras, frases, parágrafos, capítulos, tomos, etc. Mas este texto não é para propagandear (mesmo que seja ótimo se este for um “efeito colateral”) e muito menos para ostentar (e nada bom se for esta a impressão) o hábito da leitura. Enfim, ocorre que hoje esta prática não se restringe a impressos - nem é o adequado para conter o avanço do vírus - e, felizmente, temos em mãos o acesso a um acervo incrível em ambiente virtual. A Internet infiltrou-se em todos os aspectos de nossas vidas, tanto para o dever quanto para o lazer, e certamente tornou mais fácil o dia-a-dia em confinamento. Nossas vidas passaram a depender ainda mais de nossos smartphones [1].

E nestas “andanças” literárias através de reportagens, artigos, teses, cheguei a um texto [2] que levou a outro [3], e  a outros [4-7] e eis que descubro algo até certo ponto surpreendente: a União Soviética engavetou, na década de 1960, um projeto de algo muito próximo do que conhecemos hoje como Internet. Mas com um propósito diferente desde a origem: democratizar a informação, o planejamento e a tomada de decisões sobre os rumos do Estado. Em outras palavras: o projeto OGAS (sigla em Russo do que em tradução livre seria Sistema Automatizado Nacional de Computação e Processamento de Informação) [8] transferiria do Politburo para o Povo o poder efetivo de decisão, de maneira direta e descentralizada. Isso foi praticamente simultâneo à criação da ARPANET [9], em meio militar, que daria origem ao ambiente que hoje utilizamos. Pouco tempo depois, Sebastião Allende estava em vias de criar algo semelhante no Chile, o Projeto Synco ou Cybersyn [10], mas que foi completamente destruído pelas tropas de Pinochet no momento do golpe.

Entretanto, meu objetivo aqui não é discorrer sobre o que teria acontecido caso a URSS tivesse avançado em seu projeto ou se Allende não tivesse sido deposto e executado. Ao trazer esses fatos à luz, pretendo considerar as possibilidades de instituir práticas democráticas de fato (diretas, não representativas) a partir da realidade tecnológica em que vivemos hoje. Mas porque então partir deste fato pouco conhecido de um sistema político “derrotado”? Por que, diferentemente da versão “vitoriosa” que deu origem à rede mundial como conhecemos - a ARPANET era uma rede de troca de informações militares estratégicas - o projeto OGAS buscava descentralizar a tomada de decisões através do feedback obtido por terminais remotos distribuídos entre toda a população. Em outras palavras: enquanto a ARPANET interligava estações remotas em quartéis e órgãos oficiais, a OGAS pretendia estar presente em todas as residências Soviéticas.

Transportemos, então, para nossa realidade atual: a população total do Brasil é de aproximadamente 212 milhões de pessoas [11], das quais cerca de 148 milhões são eleitores aptos a votar [12]. Por outro lado, dados da ANATEL, indicam que temos MAIS celulares que pessoas[13]: o índice de junho de 2020 indica a densidade de 106,22 aparelhos para cada 100 habitantes. Não é, em números absolutos, um exagero dizer que o acesso digital é distribuído democraticamente no país. Carecemos de estudos qualitativos, mas parece óbvio acreditar que, dentro do quadro de gritantes desigualdades sociais, o brasileiro menos favorecido está muito mais próximo da conexão com a internet do que do acesso a serviços essenciais como saúde, segurança e educação de qualidade. Se tomarmos ainda como exemplo o Bolsa Família e o Auxílio Emergencial disponibilizados pela União através de aplicativos de celular, isso fica muito mais evidente.

Temos, atualmente, uma estrutura pronta e disponível para se implementar um sistema de democracia direta na tomada de decisões em questões de interesse público - literalmente na palma da mão de todo e qualquer cidadão. O que tem ocorrido na prática é justamente o contrário: como já foi diagnosticado por especialistas [14 e 15], o único feedback que hoje fornecemos através de nossos smartphones é involuntário (ou inconsciente) e com fins comerciais. Redes sociais, compartilhamento de conteúdo, notícias em tempo real, educação à distância, etc. Tudo isso democratiza o acesso e a difusão da informação, mas pouco influencia na tomada de decisões.

O legislativo disponibiliza em seus portais espaços para participação popular [16 e 17] onde é possível opinar, votar em enquetes e até sugerir leis. Mesmo acessível, é uma ferramenta limitada e sem poder decisório. Utilizada mais em casos polêmicos, de maior repercussão e visibilidade, ou em leis específicas de interesse de determinados setores - que acabam mobilizando apoiadores em suas próprias redes sociais para participarem. A influência destas manifestações pode ser questionada, principalmente por não demonstrar força para enfrentar lobbys empresariais ou sequer indicar para os parlamentares se tal posicionamento reflete fielmente a opinião de suas bases eleitorais.

Um exemplo de democracia semi-direta prático e de conhecimento público é o Orçamento Participativo, que já foi implementado em diferentes municípios, sendo Porto Alegre o caso mais notório [18]. Neste sistema, a aplicação de recursos disponíveis para determinada comunidade é decidida através de reuniões e assembléias com os membros da própria comunidade através de Conselhos. Entretanto, tais iniciativas foram perdendo força e, mesmo em Porto Alegre, as últimas gestões municipais levaram o Orçamento Participativo a um ocaso até certo ponto intencional.


A esta altura, muitos já devem ter lembrado que nosso sistema possui, além da possibilidade de propostas de leis através da Iniciativa Popular, dois instrumentos de democracia direta: o Plebiscito e o Referendo [19]. A diferença entre ambos é pequena, mas é importante ressaltar: o Plebiscito ocorre ANTES da lei ser constituída no Parlamento, sendo uma escolha; enquanto o Referendo ocorre DEPOIS da lei ser aprovada no Parlamento e serve como sanção ou veto. Mas são instrumentos que podem ser convocados somente pelo próprio Parlamento, além de dependerem de uma estrutura idêntica à de uma eleição, se tornando assim bastante dispendiosos. Após a Constituição de 1988 o Brasil teve, a nível nacional, apenas um Plebiscito - em 1993, para escolher a forma de governo - e um Referendo - em 2005, para o Estatuto do Desarmamento.

Então, cruzando todas estas informações, não seria possível que tivéssemos um aplicativo onde o povo fosse capaz de referendar as decisões parlamentares ou até decidir diretamente? Sem grandes manobras legais e com um investimento público pequeno perto do retorno que isso poderia dar no que diz respeito à representatividade? Como no caso da Suíça, onde há um índice superior a 40% de participação em votações que ocorrem cerca de 4 vezes ao ano, sobre 15 assuntos em média.[20]. Um exemplo recente diz respeito à polêmica Lei contra a Homofobia, que obteve a aprovação de 62% da população [21]. Mas na Suíça tudo é feito de maneira “tradicional”. Os votos são depositados em urnas, ou enviados pelo correio - em um sistema próprio para isso e que funciona desde 1890. E justamente com o exemplo da Suíça esbarramos no principal empecilho para eleições e plebiscitos totalmente não presenciais: Segurança. A Suíça praticamente desistiu, ao menos por enquanto, de adotar um sistema de e-voting [22].

O anonimato do voto exige que ele não seja rastreável. E esta impossibilidade de se fazer o “caminho reverso” em caso de suspeita de fraude é que torna a irregularidade mais possível. Não cabe aqui colocar em suspeita o sistema de urnas eletrônicas, onde boa parte do processo ainda é feito de modo presencial e com uma larga margem de segurança comprovada[23]. E também não podemos afirmar que a URSS estava certa em não avançar na implementação do projeto OGAS. Temos casos de sucesso, como na Estônia [24] onde, além do voto, praticamente todos os serviços públicos estão disponíveis on-line, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Vale também ressaltar que as dimensões continentais do Brasil, aliado ao seu sistema fortemente centralizado de controle de recursos a nível federal, dando pouca autonomia a Estados e Municípios, torna a questão ainda mais delicada. Mas o debate, ao menos na opinião de quem escreve este texto, deve prosseguir - e em uma direção progressista.

Para concluir e não ficar naquela velha história de que eu só critico sem apresentar nada de propositivo, gostaria então de trazer uma ideia que, pelo menos, faça os leitores pensarem a respeito: ainda que a curto/médio prazo seja inviável termos uma Democracia Direta através de meios eletrônicos, poderíamos retomar os passos em direção a uma Democracia Participativa [25]. Sem migrar todo o sistema eleitoral para o e-voting, poderíamos ter um onde os cidadãos que desejassem, pudessem participar do processo de tomada de decisões. E o fizessem através de conselhos remotos, de maneira não anônima, voluntária e não eletiva, para fornecer este feedback referendando ou não as decisões parlamentares. Obviamente seria necessário estabelecer critérios para a participação nesses conselhos como, por exemplo, vedar a participação de cidadãos com pendências judiciais ou fiscais, filiação político-partidária, ocupantes de cargo ou função pública, sócios-proprietários ou empregados em empresas com contratos públicos, etc.

O próprio sistema de consultas que temos hoje acabaria por ser mais procurado, somando-se a possibilidade de participar também após a decisão parlamentar e de maneira menos passiva. O cidadão que estivesse participando do processo teria ainda um papel representativo muito mais próximo da comunidade a que está inserido. Buscaria de uma maneira mais concreta avaliar o impacto daquela decisão em seu entorno, levando o debate ao âmbito familiar, amigos, colegas de trabalho. Talvez até aumentando o interesse de outras pessoas em participar do processo. Uma democracia eletrônica [26], porém muito mais efetiva e próxima da realidade da população. Ativa e participativa. Na palma da mão.

1.https://hashtag.blogfolha.uol.com.br/2020/06/05/uso-de-smartphones-cresceu-na-pandemia-e-mudou-forma-como-mulheres-idosos-e-mais-pobres-se-conectam/
2.https://passapalavra.info/2020/06/132629/
3.https://www.its.caltech.edu/~matilde/ScaleAnarchy.pdf
4.https://strelkamag.com/en/article/what-happened-to-the-soviet-internet
5.https://aeon.co/essays/how-the-soviets-invented-the-internet-and-why-it-didnt-work (http://elcoyote.org/o-internyet-sovietico/)
6.https://web.archive.org/web/20160403231924/http://web.mit.edu/comm-forum/mit6/papers/BenPeters.pdf
7.http://web.mit.edu/slava/homepage/articles/Gerovitch-InterNyet.pdf

8.https://en.wikipedia.org/wiki/OGAS
9.https://www.britannica.com/topic/ARPANET
10.http://www.cybersyn.cl/
12.https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/
12.http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais
13.https://www.teleco.com.br/ncel.asp
14.https://www.bbc.com/portuguese/geral-39535650
15.https://noticias.r7.com/tecnologia-e-ciencia/especialistas-alertam-para-a-coleta-de-dados-por-aplicativos-de-celular-17062020
16.https://www12.senado.leg.br/ecidadania
17.https://edemocracia.camara.leg.br/
18.http://www2.portoalegre.rs.gov.br/op/default.php?p_secao=1
19.https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_26.06.2019/art_14_.asp
20.https://www.eda.admin.ch/aboutswitzerland/pt/home/politik/uebersicht/direkte-demokratie.html
21.https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/02/09/suicos-aprovam-por-referendo-lei-contra-a-homofobia.htm

22.https://www.swissinfo.ch/por/politica/e-voting_os-argumentos-que-impediram-votar-pela-internet-na-su%C3%AD%C3%A7a/45130442
23.http://www.tse.jus.br/o-tse/escola-judiciaria-eleitoral/publicacoes/revistas-da-eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-6-ano-4/por-que-a-urna-eletronica-e-segura
24.https://e-estonia.com/solutions/e-governance/i-voting/
25.http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/146438

26.https://www.britannica.com/topic/e-democracy


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