Música: Gosto e Preconceito

Existe uma frase do compositor italiano vanguardista Luciano Berio que diz que música é “tudo aquilo que se ouve com a intenção de ser música”. Um conceito muito semelhante a este eu já havia encontrado no livro O Ouvido Pensante do maestro canandense Murray Schafer e, em suma, é um conceito positivamente infantil. Neste mesmo livro, Schafer descreve bem seu trabalho com crianças. E isto é positivo pois crianças ainda não desenvolveram preconceitos musicais. 

Preconceito musical é diferente de gosto musical. Preconceito musical é, pura e simplesmente, relegar ao conceito de não-música tudo o que não estiver no escopo de nosso gosto musical. Um exemplo clássico: para head-bangers (ou metaleiros) tudo o que não for heavy metal não é música. Então, quando um compositor de heavy metal como Andreas Kisser declara gostar de U2 passa a ser execrado. Ou então, anos depois, o ainda mais renomado Bruce Dickinson diz que "o punk foi uma grande bobagem" e chovem comentários pró e contra nas redes sociais. E isto não é exclusividade do rock pesado. O genial e, há pouco, saudoso Ariano Suassuna já declarou publicamente seu desgosto musical através da frase "qualquer porcaria como a Banda Calypso ainda é melhor que qualquer banda de rock". O resumo disto é: diferente dos conceitos de Berio e Schafer, o senso comum diz que "o que não se enquadrar em meu gosto musical não é música".

A melhor coisa dos anos que vivi discotecando e operando mesas de som foi dar fim a qualquer preconceito musical que eu pudesse ter - e tinha. Trabalhando com músicos profissionais e amadores, de diversos estilos e influências, passei a ver pontos positivos e negativos em todos. Escutei (e toquei) músicas para praticamente todos os gostos, e também percebi qualidades e defeitos. Meu gosto musical foi saudavelmente ampliado, assim como o respeito - não só pelas pessoas como também pelas diferentes preferências e produções musicais delas.

Outra coisa que se deve levar em consideração é a atual estrutura de comunicação e compartilhamento de informação. Minha geração passou por mudanças consideráveis - talvez comparáveis, mas em proporções maiores, com o advento do Rádio no início do século XX. O Rádio, e depois a TV, tiraram a música dos templos, bares e casas de concerto e levaram diretamente para dentro das casas das pessoas. Então, a música, antes apenas arte, passou a ser um produto, com um mercado cada vez maior. Enquanto o mercado musical era restrito aos discos de vinil (Singles, EPs e LPs) e espetáculos ao vivo, a música ia se popularizando. Na década de 60 surgiu a fita cassete que, depois de um tempo foi possível gravar sua própria seleção musical, e em 1979 a Sony deixou a música portátil através do Walkman.

Durante a minha infância, na década de 80, os passos ficaram mais largos. Surgiu o CD, que tomou o lugar do vinil e, depois da possibilidade de gravação, também da fita cassete. O formato reinou absoluto por pouco tempo. O mp3 (e outros formatos de compactação que não vingaram) começou com desconfiança em relação à qualidade, mas a Internet - esta mesma que me dá a possibilidade de compartilhar minhas ideias - deixou tudo mais fácil, prático e GRÁTIS. O compartilhamento da música (principalmente nos sistemas P2P como o Napster e o Torrent) em formatos compactados tomou de assalto a indústria fonográfica. Todos os ouvidos mais exigentes sabem que a qualidade do som do vinil é superior à do CD - que é infinitamente superior à do mp3 - mas a acessibilidade proporcionada pela Internet foi crucial em diversos pontos:
Não é necessário adquirir (comprar) praticamente qualquer música de qualquer artista. As leis ainda são muito incipientes (e insipientes) e não há como controlar o compartilhamento. A Internet, ironicamente com berço no programa militar norte-americano, é a maior experiência libertária do ser humano até hoje. A pirataria incomodou um tempo, e ainda incomoda alguns. Mas muitos já se deram conta que não é este o vilão da história.
Os artistas não precisam mais de gravadoras para disponibilizar seu trabalho ao público. O intermediário se faz desnecessário. Artistas de renome já se deram conta disso. MyspaceYoutube, Twitter, o já extinto Orkut e agora o Facebook, Soundcloud (e as próximas redes sociais que possam existir) se tornaram grandes fontes de comunicação direta (ou o mais próximo possível disso) na relação artista/público.
Os novos artistas também se beneficiam dos mesmos canais para mostrar seu trabalho. Profissionais ou amadores disponibilizam seus vídeos e suas gravações. Muitas bandas de sucesso hoje devem muito às redes sociais.
E por outro lado, na Internet é possível ter acesso à produção musical  de qualquer parte do mundo. Para quem tem preguiça de pesquisar por si, tenho um amigo, o Alexandre "Bola 7" Brum, que tem um programa muito bom, explorando a fundo essa diversidade, o Avenida Mundi, na Rádio Web DinâmicoFM.
A música, em resumo, passou de arte (até o século XX) a produto (século XX) e, de certo modo, atualmente encontra-se num limbo entre ambos. Do mesmo modo que a acessibilidade tirou do mercado tradicional o produto musical, a produção musical segue buscando lugar no mercado. Um tanto quanto contraditório, mas o mercado musical se dividiu em nichos que se alimentam através da diversidade encontrada na rede e, ao mesmo tempo que há "espaço para todos", a mídia de massa constrói uma "identidade musical" muito distante da realidade.

Aliás, a mídia de massa (que também merece uma postagem só para ela) há muito se apossou do papel de fonte, ignorando o que legitimamente é produzido de maneira espontânea por uma sociedade. Não só a música, mas outros tipos de arte e também a moda, o jornalismo e a política, possuem duas origens: a sociedade e a mídia. E somente quando a segunda identifica um produto "massificável", este se transforma em produto e acaba tendo sua identidade transformada pelo mercado. No Brasil temos exemplos claros que são a Tropicália nos anos 60 e 70, o rock nos anos 80, o RAP, Reggae e Pop/Rock nos anos 90, os regionalismos em diversas situações (Forró de raiz ou universitário, Axé, Sertanejo de raiz ou universitário, Boi-Bumbá) e o mais famigerado dos últimos anos: o Funk Carioca. E saibam que isto não é exclusividade brasileira. Infelizmente vejo muitos por aí valorizando pouco a produção nacional sem saber que o produto importado também passa pelo mesmo filtro da mídia. O mercado musical mundial é um reflexo do mercado norte-americano e, analisando friamente, o Forró de Luiz Gonzaga pode ser equiparado ao Blues de B. B. King do mesmo jeito que o Sertanejo de Leandro e Leonardo fazia versões em português do Folk de Simon & Garfunkel. O RAP/Hip Hop de Racionais MC's e Criolo é o mesmo (e, por vezes, artisticamente melhor) de Snoopy Dogg e Jay-Z. E, sem preconceito nenhum, para mim é possível comparar Rihanna e Anitta. Ou será que Elvis, Beatles, Madonna, Michael Jackson ou Justin Bieber teriam o alcance que tiveram se não tivessem "caído nas graças" da mídia?

Por fim, Nietzsche dizia que sem música a vida não teria sentido. Era um entusiasta, inclusive de um ponto de vista antropológico:
“A música é, de fato, não uma linguagem universal para todos os tempos, como se tem dito muitas vezes em seu louvor, mas corresponde exatamente a um período particular e ao ardor duma emoção que envolve uma cultura individual e perfeitamente definida, determinada pelo tempo e pelo espaço, como a sua mais íntima lei”. (Aforismo 171 de Humano, Demasiadamente Humano)
Existem pessoas que gostam de música pra dançar. Existem aquelas que preferem música pra relaxar. Do mesmo jeito que há quem goste de distorção, existem os que preferem o som limpo. Uns preferem vocal gutural, outros melódico. Peso e suavidade. Tem alguns, como eu, que gostam de coisas distintas entre si tanto quanto os que gostam de um único estilo. E, por fim, fiquei pasmo ao tomar consciência de que, contrariando Nietzsche, possa existir quem simplesmente não se importa com a música - para quem a música não diz NADA.

E eu ainda sonho com a educação musical no Ensino Fundamental.


Leiam mais e, por favor, não se contentem somente com os links indicados abaixo. Façam suas próprias pesquisas e tirem suas próprias conclusões:

http://www.brasilescola.com/artes/musica.htm

http://www.consciencia.org/nietzsche-musica

http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/R0550-1.pdf

http://www.seer.unirio.br/index.php/simpom/article/viewFile/2573/1902

http://www.correiodopovo.com.br/ArteAgenda/?Noticia=529155

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